Observei pela cortina vermelha entreaberta do chalé de Nêmesis o sol despontar no horizonte e Nyx se recolher de volta para os seus domínios sombrios quando a aurora chegou, expulsando a escuridão como fazia todas as manhãs. Tendo o corpo coberto por uma fina película de suor e seminua, ergui-me do colchão que sustentara meus pesadelos durante toda a noite e, com os pés descalços tocando o chão gélido, aprimorei alguns passos na diretriz do banheiro.
Usando da toalha branca que permanecia sobre a pia para extinguir a água fria de minha pele marcada por hematomas e feridas, vesti um par de roupas íntimas, uma calça jeans e a camiseta laranja do Acampamento Meio-Sangue. Em seguida, calcei os meus costumeiros e surrados all-stars azuis por cima das meias brancas que me presentearam quando cheguei, juntando todos os meus fios ruivos num coque no alto da cabeça antes de finalmente sair do chalé.
Perpassando o olhar pelas longas colinas verdejantes e os campos de morangos que se estendiam pelo Acampamento, notei que eu era uma das poucas que já haviam saído do chalé para as rotineiras tarefas do dia — que incluíam diversos treinamentos de guerra do qual eu ainda tinha um conhecimento totalmente limitado. Quando cheguei, há dois dias, ninguém tivera muito tempo para me apresentar os domínios do Acampamento e eu também não tivera muita vontade de explorar: de fato, o ataque do ciclope abalou todas as minhas estruturas mentais. E pensando exatamente no rosto grotesco do monstro e seu único olho lacrimejante, eu sabia que precisava aprender a me defender porque Joe nem sempre estaria lá para fazer isso.
Girando na pontinha dos calcanhares e me volvendo para as instalações rústicas que predominavam ali, não foi muito difícil achar o arsenal de armas quando me dediquei em procurá-lo. Assim que entrei, fiquei impressionada com o que eu encontrei: as paredes do âmbito possuíam prateleiras adornadas com diversas espadas — dos mais variados metais —, facas, adagas, aljavas de flechas normais e personalizadas, e escudos que reluziam sob o sol.
A princípio receosa e um pouco temerosa, me aproximei das defesas acopladas à parede do arsenal enquanto analisava cada um dos desenhos que os adornavam e os diferenciavam do restante. Preso à extremidade da parede e tendo um escudo de bronze ao seu lado, o dourado que carregava consigo o símbolo do signo de Libra atraiu a minha atenção exclusivamente para si. Fisgando o ouro de que era feito, puxei o escudo da parede e observei ainda mais de perto o desenho da balança em sua superfície.
— Se quer saber, é perfeito para uma filha de Nêmesis. — Quase deixei o escudo cair no chão, imediatamente me virando para Jonathan Houten que permanecia parado próximo à entrada do arsenal. A sua voz que carregava um quê de malícia toda vez que a pronunciava, o que tornou ainda mais fácil o seu reconhecimento para mim.
— O que você está
fazendo? — Sufoquei um grito no fundo da garganta, como se apenas a presença do filho de Ares instigasse a minha raiva.
— Observando você, oras. É bom ficar com o escudo, já que Nêmesis representa o equilíbrio e isso é uma balança. — Ele emoldurou em seus lábios rachados um sorriso torto e se aproximou de mim, observando o símbolo detalhadamente representado. — Além disso, é de Ouro Imperial.
— Jura? Estou deveras impressionada com a sua inteligência. — Segurei as tiras de couro que ficavam paralelas ao escudo e desviei o olhar da expressão sugestiva de Jonathan, voltando a observar os outros armamentos nas prateleiras.
Por as facas não fazerem muito o meu estilo, me tornei mais atenciosa para com as espadas que possuíam um lugar para si ao lado das adagas. Diminuindo a minha distância entre os armamentos, tive a cautela de segurar uma por uma, sentindo todas mal equilibradas em minhas mãos: algumas eram muito pesadas, portanto mal conseguia erguê-las.
Depois de experimentar exatamente oito espadas — Jonathan contava sempre que eu segurava uma —, finalmente achei uma que tinha um equilíbrio perfeito e que eu conseguia manuseá-la bem o suficiente para uma primeiranista; Dotada de uma lâmina de bronze — que mais tarde eu descobriria ser de celestial, ainda mais mortífera para monstros — e o cabo adornado com dizeres gregos nos quais não me dei o trabalho de decifrar no ápice do momento, guardei-a na bainha que também adquiri no arsenal ao redor da cintura, mantendo o escudo suspenso no ar por suas tiras de couro.
— Quer treinar? — Houten indicou pela porta entreaberta a arena doutro lado do acampamento, fisgando uma lança de ouro (imperial, eu supunha) das prateleiras e a manuseando com uma perícia que me deixou com um pouquinho de inveja. — Pego leve com você.
Assenti.
***
Antes de iniciar o combate e mostrar toda a perícia que adquirira durante os dois anos que residia no Acampamento, Jonathan me ensinou alguns movimentos básicos com a espada e a melhor forma de usar o escudo para me defender. Em seguida e após treinarmos as estocadas nos bonecos de palha localizado na extremidade da arena, ele abriu uma distância considerável entre nós dois para me dar algum tempo de preparação.
Acoplando o escudo de ouro no meu braço esquerdo e empunhando a espada da mesma forma que Jonathan me ensinara com o direito, instintivamente soergui o escudo na altura do meu tórax e posicionei a lâmina de bronze celestial ao lado de meu corpo.
Houten tinha consigo apenas a lança que pegara emprestado do arsenal, mas ele me dissera que, mesmo sem defesa alguma, eu nunca deveria subestimar um inimigo: os escudos na maioria das vezes eram muito pesados (não era o caso do meu) e isso atrapalhava a sua agilidade durante as batalhas. Ele também me disse para sempre abusar do fator surpresa quando tivesse oportunidade, o que envolvia atacar os inimigos pelas costas — lição da qual me mantive convicta em não seguir.
Ostentando o seu típico sorriso torto no rosto, Jonathan avançou em passadas lentas e me rodeou, como se estivesse apenas brincando comigo: eu era sua presa e ele o meu caçador. Travando meus olhos esverdeados sobre sua silhueta definida, acompanhei cada um de seus movimentos enquanto a raiva borbulhava em meu íntimo. Sempre que eu ficava em sua presença me tornava ainda mais irritável, como se sua aura tivesse um efeito negativo sobre mim; Além disso, a perspectiva de que eu simplesmente não passava de uma vitória fácil também me enfurecia.
Rápido como um lince, ele avançou e meneou a extremidade pontiaguda de sua lança contra o meu braço, mas meus reflexos foram bons o suficiente para que eu amparasse o golpe com a superfície dourada do escudo. Consequência de anos de treinamento, ele imediatamente desviou o foco para as minhas pernas, chocando o cabo de ouro contra a minha coxa com força suficiente para me fazer fraquejar e retroceder. A malícia brilhou nos seus olhos negros e ele saltou contra mim novamente, quase acertando um golpe certeiro na minha cabeça se eu não tivesse erguido o escudo a tempo.
Infelizmente, acabei cedendo sob o seu peso superior ao meu e despenquei no terreno arenoso, esmagada por baixo de seu corpo musculoso e cheio de cicatrizes. Aturdida com a minha queda, movimentei a espada no mínimo espaço que possuía e orquestrei um corte com a lâmina de bronze nos bíceps expostos de Jonathan, fazendo um fio de sangue brotar da derme bronzeada e manchar o solo abaixo de nós com pequenas gotículas rubras.
Houten mal pareceu sentir o corte provocado pela espada, e se o sentiu, não demonstrou. Usufruindo de sua força aprimorada e resistência fora do comum, ele esmurrou o meu ouvido enquanto me mantinha presa sob si, danificando todos os meus sentidos com o golpe que eu não tivera a chance de defender. Completamente atordoada e tomada por uma onda de tontura, murmurei baixinho a minha indignação.
— Você disse que ia pegar leve, cara.
— Desculpe, mas você deveria saber que a guerra não é justa. É no mínimo, hum...
sangrenta. — Engatinhei para longe de Jonathan quando ele finalmente saiu de cima de mim, me observando com um olhar que continha um quê de diversão.
Massageei com a pontinha dos dedos o lugar atingido pelo soco, tentando focalizar a minha visão enquanto me erguia do terreno arenoso e desenlaçava o escudo do meu braço. Mantive o ouro imperial suspenso no ar pelas tiras de couro, cambaleando na diretriz de Jonathan enquanto os nós dos meus dedos estavam brancos devido à força que eu segurava o cabo da espada. Quando observei mais atentamente os dizeres gregos marcados no metal, notei que
Justiceira era o nome da espada que eu havia escolhido no arsenal.
Aprumei alguns passos para diminuir a distância entre mim e o meu adversário, suspirando enquanto tentava ignorar a minha cabeça zumbindo. Houten afastava os seus cabelos colados na testa pelo suor enquanto me observava, esperando para ver o que eu ia fazer. Me lembrando das poucas vezes que joguei frisbee com Joe, repeti o mesmo processo que eu fazia quando lançava o disco, mas agora com um escudo um pouco mais pesado: girando o corpo diversas vezes para pegar o impulso necessário, arremessei o escudo com toda minha força num voo prolongado contra Jonathan, que há alguns instantes parecia querer rir dos meus movimentos giratórios, como se a pancada tivesse afetado o meu cérebro.
O coque no alto da minha cabeça se desprendeu do elástico, e os meus cabelos ruivos caíram como uma cascata sobre as minhas costas quando o escudo de ouro acertou o semideus adversário no estômago, mandando-o para trás com um impacto violento. Jonathan se contorceu no chão quando foi atingido pelo escudo, visivelmente sem ar e surpreso com o meu arremesso bem-sucedido.
Eu havia contado com o mesmo fator surpresa que ele me ensinara, mas diferentemente dele, não o ataquei pelas costas: quando vi o quanto ele estava me subestimando, foi no mesmo momento que vi a oportunidade de que Jonathan falara. Dessa vez, foi eu quem emoldurou um sorriso divertido nos lábios quando vi os seus olhos esbugalhados postos sobre mim, mais ainda com uma reconhecível malícia em suas pupilas negras.
Mancando e com a cabeça zumbindo constantemente, me aproximei de Jonathan com a espada de bronze ao lado do corpo e fisguei o escudo dourado do terreno arenoso, envolvendo-o no antebraço esquerdo. Ele não pareceu querer apresentar qualquer resistência, se focando exclusivamente em recuperar o ar que eu o roubei de si momentos anteriores.
Dando as costas para o filho de Ares que ainda se contorcia de dor na arena, trilhei o meu caminho de volta para o vigésimo nono chalé, seguindo o curso contrário dos outros campistas que agora iam para o café da manhã no refeitório.